Quando eu era criança, tive um caderno de recordações, destes onde as pessoas colocam uma frase e assinam embaixo. O caderno era um hábito saudável e poético da época. Hoje, infelizmente as crianças e adolescentes não o fazem mais, preferem o e-mail, o orkut, MSN, tantos nomes e outros meios tecnológicos que vão surgindo para registrar seus momentos junto às pessoas queridas. Não que eu seja contra, mas, ah, o caderno era uma forma de se ter à mão os sentimentos revelados em relação ao seu dono. E no meu ponto de vista, tudo o que é feito, a punho, é de grande valor sentimental.
Deixando de lado esse sentimentalismo piegas, falemos de meu caderno. No início do ano de 2.000, eu já adulta, preservava a sete chaves meu caderno. Aconteceu que veio uma enchente avassaladora, sobre Três Corações, não foi registrada nenhuma morte, mas fez grandes estragos. O Rio Verde se exaltou de tal forma, que minha casa foi atingida. Lembro-me da tristeza dos foliões, que não conseguiram levar adiante a bandeira dos Santos Reis até o dia 06 de janeiro daquele ano.
A agitação do Corpo de Bombeiros, o esforço dos militares para ajudar os moradores com seus móveis, seus animais, seus bens mais queridos. Foi uma correria. A chuva durou uns cinco dias. Dizem os mais velhos, que essa enchente acontece por estes lados de 40 em 40 anos; bom, não sei se estarei viva na próxima.

O fato é que as águas entraram vagarosamente em minha casa, como que pedindo licença, e dando tempo da gente sair, só que não imaginávamos que o estrago ia ser tanto, deixamos algumas coisas no sótão de casa, que fica em cima da laje. Retiramos os imóveis, porém, colocamos pequenos acessórios como discos, CDS, livros, quadros, roupas neste sótão. Ledo engano! As águas cobriram a casa inteira, triunfante e onipotente. Três Corações ficou literalmente ilhada. O acesso só mesmo pelo trevo entre Campanha, a entrada pelo Jardim Paraíso, praticamente impossível.
As águas subiram lentamente, e lentamente voltaram ao seu leito. Minha casa ficou repleta de barro, algumas paredes caíram. Mas não evitei minha concepção poética, ao menos participei de uma grande enchente.
Juntar os cacos, voltar pra casa. Lá estava meu velho caderno, sujo, impossível de ser guardado. Partiu meu coração, pedaços molhados de minha infância. Meu pai já falecido havia deixado várias mensagens no caderno. Fiz questão de pegar estas folhas, sujas, tirei a terra que ficara por cima, coloquei no sol para secar, ficou inabilitado o caderno, tive de jogar fora, mas guardei aquelas páginas amarelas escritas com tanto carinho pelo meu pai. As páginas amareladas e feias, que guardo com carinho e cuidado, um pedaço do meu pai, onde está presente um verso do poema de Olavo Bilac: Velhas Árvores.
Meu pai, sempre calmo, e enérgico quando precisava, criou seus 10 filhos com muito amor. Foi telegrafista da velha Rede Ferroviária nos seus tempos áureos. Falava baixinho. Todos os dias sentava para anotar algo, sim, ele também adorava sentar em uma mesa para escrever cartas aos parentes, fazer suas pequenas anotações. Transcrevia frases em seu também caderninho. Além de comentários sobre as Reuniões da Sociedade de São Vicente de Paula, onde se dedicava com afinco. Eu admirava ver meu pai ali, escrevendo ou lendo. Acho que me ensinou muito com seus gestos singelos.

O Poema de Olavo Bilac retiro aqui alguns versos:


Não choremos amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo. Envelheçamos
Como as Arvores fortes envelhecem,
Na glória da alegria e da bondade
Agasalhando os pássaros nos ramos
Dando sombra e consolo aos que padecem.
Envelheçamos meu pai, com dignidade, como o senhor o fez!