Relendo um livro de Guimarães Rosa me deparei novamente com o esplêndido conto: A Terceira margem do Rio,que nos fala sobre um homem, pai de família, que manda fazer uma canoa muito resistente. Depois, do nada, abandona tudo para viver nesta canoa, num rio próximo a sua casa. Sua mulher, numa construção digna do mestre mineiro ainda o interpele: "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” (construção belíssima esta, deleito linguístico que traduz o mais puro mineirês).O fato é que o homem nunca mais voltou, e nunca mais falou com ninguém; o narrador é seu filho, personagem que ama o pai, mesmo ele feito este ato sem resposta.

O homem fica ali por anos; suposições são feitas para a maldita direção que tomara o pobre senhor, tido outrora como respeitável pai de família. Tudo o que sabem é que se o pobre desce da canoa, é só para fazer suas obrigações primitivas, mesmo assim, longe de todos. Do contrário, sua vida agora se baseia na canoa, que virou seu tugúrio.Seus filhos se casam e mudam do local, a esposa segue com a filha para outro lugar, já envelhecida e certamente ainda tristonha com aquele que fora pai de seus filhos. Somente o filho narrador permanece próximo ao pai, sentindo certa sensação de culpa e no dever de olhar para o indecifrável pai, que não atende aos apelos de ninguém.

Um dia, o filho perturbado por ver o pai naquela situação, decide de ímpeto, oferecer para o genitor que ficasse em seu lugar. "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..."

Acontece que, numa reação inesperada pelo nosso narrador, o pai, que dantes não respondia com nenhum gesto, começa a acenar para o filho, que foge assustadoramente. Certamente medo pela aceitação do pai, medo de ter de levar aquela vida, de trocar de lugar com o já cansado pai. Depois ninguém mais teve noticia daquele homem...O filho fica doente e lamurioso até o fim de seus dias.

Observo as pessoas. A margem da vida... quantas vezes nos sentimos incautos, tomando atitudes erradas diante de determinadas situações; será que o pai não sentia falta da vida que levava, e se crucificou por nada? O que pensou o filho, ao dizer aquelas palavras, abnegando também sua existência?Talvez se não tivesse oferecido para ficar no lugar do pai, não ficaria com culpa, culpa de algo que sabia que não teria condições de cumprir.

Ficar na posição do pai ,que certamente cansado por sua atitude devaneia, resolve aceitar a atitude do filho, ou na posição do filho, que se acovardou antes suas próprias palavras? Freud já nos orientava sobre a ação por impulsos, mas temos o direito de ir, de ficar, de agir... O filho poderia ter pensado em sua ação, deixado as coisas no lugar.Teria assim ficado livre de sua consciência?..... É uma atitude complexa, vendo que tudo se reflete.

Trago para várias situações do cotidiano. Uma dose de ousadia faz bem, o excesso pode acumular resultados insatisfatórios. A melhor alternativa antes de tudo é saber direcionar nossos impulsos, a pitada da galhardia em terreno minado, aliado à sensatez, para evitarmos futuros problemas.Complicado, mas o viver pede isto.

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