Uma dos últimos textos que li do autor Moacyr Scliar foi uma crônica, da qual me esqueci o nome, onde ele, fazendo caminhada, é ultrapassado por uma senhora bem mais velha que ele;com refinado humor, o escritor conta a história.Hoje a velhinha não mais o ultrapassará em sua caminhada...
Pois bem, faleceu hoje este grande escritor, membro da Academia Brasileira de Letras e médico. Para homenageá-lo, deixo aqui uma crônica(meu gênero favorito), de sua autoria. O médico e cronista, juntos.




Tupi or not tupi: um dilema do médico brasileiro
O médico suíço Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus Von Hohenheim – que viveu entre 1493-1541 aproximadamente – autodenominado Paracelso (sem muita modéstia, ele se punha ao lado de Celso, o grande médico da antigüidade romana) revolucionou a medicina ao introduzir o mercúrio no tratamento da sífilis, doença até então epidêmica. Com isso praticamente deu origem à quimioterapia baseada em drogas específicas para enfermidades. Mas não só na terapêutica Paracelso inovou. Professor de medicina e autor de várias obras, falava aos alunos e escrevia em alemão ainda que à época o idioma obrigatório da profissão fosse o latim – que Paracelso conhecia bem –, mas que recusava por causa de seu espírito contestador. Ou seja, bombástico ele era mesmo, fazendo jus ao nome.
Por que os médicos utilizavam o latim? Pela mesma razão que nobres e prelados o faziam: o poder que representava. Latim havia sido o idioma do Império Romano e, como diz o provérbio, quem foi rei nunca perde a majestade: o latim mantinha, apesar de tudo, a imagem do poder. Com o tempo, outros impérios foram surgindo. Napoleão estendeu o domínio da França à boa parte do mundo e com isso deu uma dimensão global ao francês, o que, diga-se de passagem, apoiou-se numa admirável cultura, literária e artística sobretudo, mas também médica. A partir de fins do século 19 e graças a nomes como Pasteur, Claude Bernard e Charcot, a medicina francesa pontificava, coisa da qual veteranos como eu podem dar testemunho. Estudávamos anatomia no Testut-Latarjet, famoso tratado (havia duas versões, uma completa, o “Testuzão”e outra abreviada, o “Testuzinho”). Eu tinha um professor que era capaz de dar uma aula em francês, e fazia isso, ainda que poucos alunos entendessem o que ele falava. Frases do tipo Dans la médécine como dans l’amour, ni jamais, ni toujours (na medicina como no amor, nem nunca, nem sempre), produto do racionalismo gaulês, eram freqüentemente usadas nas discussões de caso, sem falar nas palavras de origem francesa, como gripe e torcicolo.
E aí a Inglaterra conquista o mundo, construindo um império sobre o qual o sol nunca se punha, e, depois da Inglaterra, os Estados Unidos assumem a liderança global. Resultado: o inglês desloca o francês, como este havia deslocado o latim. A quantidade de palavras inglesas que fazem parte do nosso cotidiano é enorme, e às vezes nós as usamos até de forma inconsciente. Na linguagem habitual o inglês está até substituindo o português: as vitrines (aliás, esta palavra é um galicismo) não anunciam liquidação, mas sim sale; e não existe mais entrega em domicílio, existe delivery. Quando chegamos à medicina, então, o inglês é a regra. Não só são usados termos neste idioma, como incorporamos a construção de frases ao traduzi-las do inglês. Dizemos: “É demonstrado no quadro que...”, em lugar de “O quadro demonstra que...”. Uma doença que no passado era grave, agora passa a ser “severa”, e assim por diante.
Pergunta: o que fazer? Relax and enjoy? Ou tomar alguma providência? O deputado Aldo Rebelo é autor de um projeto de lei proibindo estrangeirismos. Outros projetos multam severamente (ops!) proprietários de lugares onde letreiros e cartazes contenham palavras em inglês. Será que vai funcionar? Em alguns casos cabe a dúvida: vamos mudar de mouse para “rato”? Será que é uma vantagem? Por outro lado, não podemos esquecer que os idiomas são dinâmicos e que a incorporação de vocábulos ocorre, sobretudo num mundo globalizado como é o nosso. Tomemos o caso do Brasil: qual seria, afinal, o nosso idioma original? O tupi-guarani, como queria o Policarpo Quaresma, aquele personagem de Lima Barreto? O português? Mas o português não é, afinal, uma variante do latim? Ninguém formulou o dilema melhor que Oswald de Andrade em seu “Manifesto antropofágico” de 1928: “Tupi or not tupi, that is the question”. E o próprio título do manifesto sugere um caminho: a antropofagia é um meio, ainda que inusitado, de incorporar o estranho. Abrasileirar palavras é torná-las parte de nossa realidade. Macaquear os outros, ao contrário, é sinal de subserviência. Num momento em que o Brasil, e a medicina brasileira, lutam para encontrar seus caminhos, esta é uma coisa que os médicos devem ter em mente.

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