Um dos contos que mais me apraz é o “Natal na Barca”, da majestosa escritora Lygia Fagundes Telles. Sei que o Natal já passou, mas é preciso ser Natal em nossos corações todos os dias; não o Natal dos presentes, da ceia, mas o da solidariedade, dos valores cristãos e sobretudo, humanos. O conto fala sobre esperança, num ambiente áspero, e é a esperança que desejo a todos neste ano que se inicia.


Pincelando o conto, relata sobre uma mulher que se encontrava numa barca, na época do Natal, não sabendo como foi parar lá, só que tudo ali era silêncio e treva.Com apenas quatro passageiros, a mulher se encontrava na presença de um velho bêbado, uma outra jovem com uma criança; mas a personagem narradora se sentia bem, naquela mudez mórbida.Até que a jovem mãe puxa conversa com nossa personagem principal, e em meio a perguntas começa o destrinchar da história. A jovenzinha estava ali, com o filho.

- Seu filho?

- É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que devia consultar um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem, mas de repente piorou. Uma febre, só febre....- Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo, mas o olhar tinha a expressão doce. - Só sei que Deus não vai me abandonar.

Sofrera anteriormente a morte de seu filho primogênito, o marido a abandonara e ela estava altiva,e esperançosa, levando o filho febril ao médico. Com sensação incômoda, a narradora tenta focalizar o assunto para o outro filho da moça, doente, mas vivo. Mas a mãe ainda continua a conversa do outro filho que partira:

- tão bonzinho, tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado...Só a última mágica que fez foi perfeita., 'Vou voar`, disse abrindo os braços. E voou.

A mulher, ainda mais incomodada, preferia não ter começado aquela conversa, mas os tais sentimentos humanos...“Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços - os tais laços humanos - já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. Mas agora não tinha forças para rompê-los.”

A mulher conta depois como foi que o marido a abandonou, contando as sucessivas desgraças com toda calma do mundo:

- A senhora é conformada.

- Tenho fé. Deus nunca me abandonou.

— Deus — repeti vagamente.

— A senhora não acredita em Deus?

— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...

Numa conversa anafórica, fala de novo sobre o filho primogênito que perdera.A narradora , fica sem saber o que dizer, como que refugiando-se naquele gesto, levanta o xale que cobria a criança, volta a cobri-la, porém, o menino estava morto.

A personagem sente covardemente acuada-como contar àquela mãe tão crente o que havia acontecido?- por sorte o local de desembarque estava próximo. Chegado o destino, ela não vê a hora de descer. Até que...

— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.

— Acordou?! Ela sorriu:

— Veja...

Paro o conto por aqui, ele tinha tudo para ter um desfecho infeliz, no entanto, a tal fé, a esperança, a crença da jovem em contraposição à vida de aparente tacanhez daquela mulher. A fé, a esperança neste conto fantástico, uma lição de vida.Um conto sobre o Natal, mas que pode servir para todos os dias...Feliz Ano Novo a todos, prevalecendo sempre “os tais sentimentos humanos”.

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